Senador Cristovam Buarque (PPS-DF)
A indignação com a negação de liberdade aos escravos
só começou a contaminar a mentalidade da sociedade a partir da segunda metade
do século XIX. Ao longo de 300 anos, a Igreja Católica apoiava, os
proprietários de terra precisavam, as classes médias se beneficiavam, e raros
intelectuais criticavam a escravidão. A escravidão era cômoda e natural para a
“classe” branca: não havia indignação nem pretextos morais para extingui-la.
Enquanto era defendida por razões lógicas ou
econômicas, a causa abolicionista adquiria algum apoio, mas não conseguia os
seguidores necessários para se impor sobre a mentalidade histórica que aceitava
como natural a desigualdade entre brancos e negros. A abolição só se consolidou
quando os abolicionistas conseguiram passar a indignação moral contra a
escravidão.
Mais de cem anos depois, a população brasileira ainda
não sente indignação moral com a moderna escravidão, decorrente da desigualdade
no acesso educacional de cada criança, dependendo da renda da família.
A má educação ainda não é vista como um navio negreiro
que
leva milhões de crianças carentes em direção à pobreza e leva o país a baixa
produtividade, má distribuição de renda, violência, ineficiência e injustiças.
Não se consegue visualizar que uma criança fora de uma
boa escola é como se ela fosse uma pessoa sendo jogada ao mar, crescendo para
ser explorada e excluída devido à negação da educação. Não há nem mesmo um nome
para indicar “negação de educação”, como havia a palavra escravidão para
indicar “ausência de liberdade”.
A negação da
liberdade a um escravo era visível em sua servidão, no trabalho forçado, na
venda dele próprio e de seus filhos, mas a negação de acesso à educação não é
vista como um crime nacional contra a humanidade; nem como uma burrice contra o
futuro do país.
A partir do século XIX, a escravidão passou a ser uma
aberração moral, mas ainda era um instrumento técnico para uso do mais
importante vetor econômico, que eram os braços dos escravos; no século XXI, a
negação da educação – “aneducação” – é uma aberração moral, mas também é uma
estupidez nacional ao impedir o aproveitamento do mais importante vetor do
progresso nos tempos atuais: o conhecimento de cidadãos livres e educados.
Apesar disso, a ausência de educação de qualidade para
todos ainda não é vista como uma indecência social e uma estupidez econômica.
Lamentavelmente, é difícil provocar a indignação da
população contra essa tragédia. E, sem esse despertar moral, o Brasil
continuará seu atraso em relação ao resto do mundo e manterá as injustiças a
que nos acostumamos dentro de nosso território, como acontecia nos séculos da
escravidão.
Continuará com a moderna escravidão da negação de
educação à maior parte de sua população, diante dos olhares dos empresários,
das religiões, das classes médias e dos intelectuais, sem indignação diante da
tragédia da educação de base, deficiente e desigual.
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